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Por Roque Tomazeli

Vida e desafios de Marcelo, cego, bacharel em Direito de Gramado

Marcelo Lechner da Silva, 30 anos, nasceu prematuro (seis meses) e totalmente cego. Vive no Bairro Piratini com a mãe, a irmã e a avó. Com 14 anos, já fazia cardápios para estabelecimentos hoteleiros e gastronômicos de Gramado utilizando as normas do Sistema Braille. Sempre procurou ajudar outros portadores de deficiência visual da cidade. É formado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e tenta a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Confira a entrevista com Marcelo, que leva uma vida simples, sem mostrar amargura pela deficiência visual.

Crédito foto: Roque Tomazeli

O bacharel em Direito Marcelo Lechner da Silva


Pergunta – Gramado oferece condições para a formação de um estudante com deficiência visual?

Resposta – Aprendi o Sistema Braille na Associação dos Pais e Amigos dos Deficientes Visuais (Apadev) de Caxias do Sul. Cursei o ensino fundamental na Escola Municipal Senador Salgado Filho, onde tive professoras especializadas como Ise Marta Cavichion, Irani Foss e Hellen Michaelsen. Lá, na Senador, tem uma sala de recursos com computador, scanner e impressora. A estrutura foi montada a partir do meu caso. Meu ensino médio foi no Colégio Santos Dumont. Hoje, todas as demais escolas de Gramado, mesmo as estaduais, recebem apoio da Escola Senador.

Pergunta – Quais são os meios de comunicação que você prefere?

Resposta – Comecei lendo a Revista Brasileira para Cegos e a Revista Pontinhos, recebidas do Instituto Benjamin Constant, do Rio de Janeiro. Com as novas tecnologias acesso meu computador, que tem programa de ledor de tela com voz humana. Dessa forma, encontro as informações que preciso (para mostrar, ele abriu a página do site Repórter Gramado e ouvimos duas notícias publicadas, com a tela registrando simultaneamente as imagens).

Pergunta – As suas relações pessoais contemplam outros portadores de deficiência visual?

Resposta – Tive mais contatos com os irmãos Jairo e Bianca da Conceição, que também são cegos. Fui instrutor de informática deles na Escola Senador. Não sou formado nisso, mas passava minhas experiências, para ajudar. Agora eles estudam no Colégio Estadual Ramos Pacheco, no Bairro Floresta.

Pergunta – Gramado tem uma lei (2095/2003) considerada pioneira no Estado, que prevê a obrigatoriedade de pelo menos um cardápio pelo Sistema Braille nos restaurantes, bares, hotéis e similares na cidade. A legislação não é cumprida. Como você avalia isso?

Resposta – Infelizmente falta sensibilidade. Certo descaso das pessoas em relação à legislação e com os portadores de deficiência visual. O cardápio é importante para a acessibilidade e interação social do deficiente. Senão o garçom tem que ficar ao lado, explicando tudo. Ou, como mais acontece comigo, minha mãe (Adriana) precisa ficar lendo para mim.

Pergunta – Você é capaz de confeccionar cardápios pelo Sistema Braille, como já mostrou. Quanto custa o seu trabalho para elaborar um cardápio, seguindo orientações do contratante?

Resposta – Faço qualquer trabalho nesse sentido. Basta que me passem o cardápio no formato tradicional que eu transformo. Só não faço a encadernação, que é por conta do contratante. Cobro por folha impressa em Sistema Braille. Não é o preço que vai impedir o empresariado de cumprir a lei. O cardápio especial ainda eleva o conceito do estabelecimento que oferece aos clientes portadores de deficiência visual essa acessibilidade. É um equipamento turístico, numa cidade turística.

Pergunta – De que forma você percebe a cidade, as pessoas, o teu bairro?

Resposta – Sozinho vou até o mercado perto de casa. Quando vou para mais longe, é sempre com a mãe. Estudei o mapa do Centro da cidade, elaborado pela professora Ise Marta (ele explica que o mapa foi feito com cola colorida, que tem relevo diferente). Sei que para chegar à Igreja Matriz tenho que seguir certos caminhos. Sinto quando estou na Rua Coberta, pelo eco das vozes. Percebo a proximidade de um restaurante ou de uma loja de chocolates pelo olfato. Uso também a minha bengala. Gosto do Banco Bradesco, que tem um bom sistema para deficientes visuais. Nas farmácias têm informações nas embalagens dos medicamentos.

Pergunta – Você recebe algum benefício social?

Resposta – Um salário mínimo, do INSS. É um pouco difícil. (Construímos uma casa nova. A outra era úmida e o pátio alagava nas chuvas. Temos contas, completa a mãe.)

Pergunta – Se você fosse um legislador, que defesa pública faria para os portadores de deficiência visual?

Resposta – Lutaria pela causa dos deficientes. Por mais oportunidades de trabalho e renda. Fiscalizaria as leis, como é o caso da lei do cardápio em Gramado, que não é cumprida. Tentaria despertar nas pessoas o sentimento de se colocarem nos nossos lugares, com os nossos problemas.

Pergunta – Quais são seus planos futuros?

Resposta – Sou formado em Direito pela UCS. Não passei no exame da OAB na primeira tentativa. Sigo tentando. Tive uma proposta de estágio em Canoas, mas não dá. Preciso ficar aqui, com a família, na minha cidade.

(Têm variações para Braille, dependendo do emprego. Para esta entrevista, foi adotada a grafia única Sistema Braille. Quinta-feira, dia 11, a história da lei do CARDÁPIO EM BRAILLE de Gramado contada no artigo VACA CEGA, publicado pelo Jornal Zero Hora em 2005.)

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