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Por Henrique Braga e Marcelo Módolo*

Covid tem gênero?

Pertencemos todos ao gênero Homo. Na conhecida taxonomia das ciências biológicas (aquela que organiza reinos, filos, classes, etc.), nossa espécie sapiens está no mesmo gênero de outras menos afortunadas (como o erectus, o georgicus ou o heidelbergensis), todas extintas. Assim, somos do gênero Homo e da espécie sapiens.

Casos como esse deixam claro que o termo “gênero” nem sempre remete a sexo ou à noção social de gênero (que distingue pessoas cis e trans, por exemplo). Sua história talvez ajude a entender o termo: “gênero” provém do longínquo genus, que significava algo como origem, ascendência. Teoricamente, elementos que tenham a mesma origem terão características comuns e, desse modo, podem ser agrupados – o que pode explicar a recorrência desse termo em diferentes taxonomias (“gêneros discursivos”, “gêneros musicais” e tantos outros “do gênero” – com o perdão do trocadilho).


Isso não explica, porém, por que, na maioria das línguas românicas, o gênero linguístico se dividiu em “masculino” e “feminino”, ou mesmo, continuando o que ocorria em latim, masculino, feminino e neutro (caso do romeno). Ou ainda por que, com tal classificação, seria possível atribuir “masculino” ou “feminino” a elementos que, em rigor, não parecem compatíveis com tal ordenação (o que haveria de masculino em “o esquema” e de feminino em “a tática”, por exemplo?).

Antes de discutir o gênero da covid-19 (algo seguramente menos enigmático que o sexo dos anjos), vamos a uma breve reflexão sobre a noção de gênero linguístico.


GÊNERO LINGUÍSTICO: MISTÉRIO OU ARBITRARIEDADE?

Em seus Princípios de linguística geral, o linguista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr. faz uma excepcional revisão bibliográfica do gênero como categoria gramatical dos nomes. Entre outras coisas, Mattoso Câmara pontua que a flexão de gênero é mais exceção que regra nos substantivos em língua portuguesa. Seja entre entes animados (“a onça”, “o cônjuge”, “a testemunha”), seja entre inanimados (“o livro”, “o sofá”, “a poltrona”), são muitos os nomes que não mudam de forma para indicar masculino e feminino (também não faria sentido buscar um feminino para “o sofá”, ou um masculino para “a poltrona”).


Além disso, lembra Mattoso, os critérios das línguas para diferenciar os gêneros variam, indo além da divisão masculino/feminino. O autor cita o malaio, idioma em que, entre outros gêneros, há um para designar os seres humanos e outro para indicar os bichos de cauda. Mesmo em língua portuguesa, há formas nominais que não são masculinas ou femininas: os demonstrativos neutros (“isto”, “isso” e “aquilo”) expressam o valor “não humano” – podendo por isso assumir sentido pejorativo quando designam pessoas (em frases como “Isso é o líder de vocês?”, por exemplo). Isso acontece porque os pronomes do português guardaram uma sorte de memória etimológica da gramática latina, na qual o gênero neutro se manifestava. Resquícios da língua mater.


Apesar dessas ponderações, seria exagero ou ingenuidade concluir que não há alguma relação entre gênero gramatical e gênero biológico ou social, inclusive porque este pode ser expresso por aquele (“o professor” / “a professora”, “o jovem” / “a jovem”, etc.). Entre outras hipóteses, a primorosa revisão bibliográfica de Câmara Jr. menciona a que foi defendida pelo linguista alemão Franz Bopp: povos indo-europeus teriam transferido a noção de sexo do reino animal para os demais elementos do universo, por meio de associações que os viam como “machos” ou “fêmeas”.


Tais analogias, porém, se existiram de fato, não sustentam as noções de gênero atuais das línguas neolatinas, que sequer são coincidentes (entre tantos outros exemplos, podemos lembrar que, em espanhol, “la nariz” e “la leche” são termos do gênero feminino).


O COVID OU A COVID?

Não há uma normativa oficial sobre o tema em língua portuguesa, então não devemos ficar admirados se “falsos profetas da gramática” surgirem apregoando uma saída “lógica”: “como é uma doença, o certo é a covid-19”, alguns certamente diriam. Essa saída poderia ser exemplificada com um texto publicado pela Academia Brasileira de Letras, que, embora não tenha tomado posição no assunto, citou “a pandemia da covid-19” ao noticiar o lançamento de sua seção jornalística sobre o tema.


Postura mais elogiável foi a da Real Academia Española: além de explicar a motivação das maiúsculas (trata-se de uma abreviação de COronaVIrus Disease, algo como “doença do coronavírus”), a entidade registrou que o feminino é aceitável, por acompanhar o gênero feminino do substantivo “doença”. Ainda segundo a instituição espanhola, o masculino também é cabível, tendo em conta o que ocorre com outras enfermidades cujos nomes provêm, por metonímia, dos nomes de seus vírus: o ebola e o zika, por exemplo.


Já a Académie Française explica que o gênero de um acrônico ou sigla advém do núcleo do sintagma que a compõe, assim: a S.N.C.F. (Société nationale des chemins de fer, Sociedade Nacional de Ferrovias), porque o núcleo desse sintagma é “sociedade” e o C.I.O. (Comité international Olympique, Comitê Olímpico Internacional), porque o núcleo, comitê, é um nome masculino.


Quando um acrônico ou sigla é composto de palavras estrangeiras, o mesmo princípio se aplicaria. Dessa forma, apregoa a Académie, deveríamos dizer “a covid-19”, pois covid significa corona virus disease (“doença do coronavírus”, o núcleo é o substantivo feminino “a doença”), enquanto “19” se refere a 2019, quando os primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinês no final de dezembro. Igualmente, como a Real Academia Española, argumenta que o que acontece é que os falantes, por metonímia, atribuem à doença o tipo de patógeno que a causa.


Em qualquer dos casos, note-se que reside a arbitrariedade (ou o mistério) original dos gêneros gramaticais: “doenças” não são “fêmeas”, nem “vírus” são “machos”.


O ‘X’ DA QUESTÃO

A distância que há entre gênero gramatical e gênero biológico não desqualifica as reflexões de ativistas e acadêmicos (as) debruçados (as) sobre temas como preconceito, machismo e exclusão. Merece nota o incomum exemplo de Grada Kilomba, portuguesa cuja obra sociológica Memórias da plantaçãoepisódios de racismo cotidiano foi publicada originalmente em língua inglesa.


Na tradução à língua materna, a autora inseriu uma espécie de glossário, discutindo termos que usara com naturalidade em inglês, mas não lhe pareciam igualmente cabíveis em português. Sobre o termo subject, a escritora pontua a exclusividade do masculino em português, “o sujeito”: para ela, a inexistência do feminino “a sujeita” ou do não binário “xs sujeitxs” exige buscarmos “compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, escrita ou falada, ou ser identificada como um erro”.


*Marcelo Módolo (foto superior), professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq

e Henrique Braga (foto inferior), doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP


Publicado originalmente no Jornal da Universidade de São Paulo (USP), 15 de junho de 2020


Fotos: divulgação arquivo dos autores


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