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A agonia da reportagem jornalística

* Por Dennis de Oliveira

Na obra O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista de jornalismo, Adelmo Genro Filho fala que o jornalismo é uma forma de apropriação do conhecimento da realidade cristalizada na singularidade dos fatos, distinguindo-se assim da Ciência (que busca a universalidade) e Arte (centrada na particularidade da apreensão por parte do artista). Entretanto, Genro Filho alerta que uma narrativa jornalística que não se preocupa em ampliar a compreensão do fato extrapolando as suas fronteiras do singular cai no sensacionalismo.

Dennis de Oliveira


Genro Filho aponta que tal extrapolação das fronteiras do singular pode se valer da universalidade da Ciência, da particularidade da Arte ou mesmo da articulação com outros fatos singulares buscando a contextualização. No meu livro Iniciação aos Estudos de Jornalismo aponto justamente essas possibilidades de transcendência do singular, que podem ser por meio do chamado “jornalismo de precisão” (que aproxima o jornalismo da ciência); do “novo jornalismo” (jornalismo em interface com a arte) e as reportagens clássicas de aprofundamento (articulação de fatos singulares com outros fatos singulares buscando o contexto).

 

Em seminários realizados por discentes do curso de Jornalismo neste segundo semestre de 2024, na disciplina Conceitos e Gêneros do Jornalismo, foram feitos monitoramentos da cobertura jornalística dos meios hegemônicos no mês de outubro nas editorias de política, economia, cultura e internacional. O que se observou nesta análise foi que efeitos disruptivos das tecnologias digitais impactaram não apenas o modelo de negócios do jornalismo e todo o seu processo produtivo, mas principalmente a perspectiva do fazer jornalístico. Alguns impactos observados foram:


• Transformação da atividade jornalística em curadoria de conteúdo informativo publicado em redes sociais. Boa parte das matérias jornalísticas publicadas são meramente reproduções de conteúdos que celebridades ou pessoas públicas inserem nas suas redes sociais. Ainda que tais conteúdos poderiam ser ponto de partida para pautas que poderiam ser mais bem aprofundadas em reportagens jornalísticas, por diversos motivos as mídias jornalísticas se transformaram meramente em amplificação desses conteúdos, apenas adaptando-os ao formato estético da narrativa jornalística. Exemplos: inserindo tais conteúdos como se fossem falas de fontes incorporadas a uma narrativa estética de notícia (lide, sublide etc.). As imagens inseridas são também retiradas das redes sociais.


• Transformação dos títulos em clickbaits (iscas de clique, estratégias para buscar mais cliques nas publicações) nos portais de notícia. Muitas vezes, a regra do título como condensação da principal notação do abre da matéria é transfigurada para um título subordinado às regras do SEO (Search Engine Optimization – em português, otimização para os mecanismos de busca), uma técnica utilizada para melhorar o tráfego orgânico do site nas páginas de resultados de buscadores, como o Google e o Bing. Em alguns casos, foram observadas matérias publicadas duas vezes no mesmo site com títulos distintos e outros em que o título promete uma coisa que a matéria não diz.


• O excesso de uso de verbos dicendi nos títulos como estratégia do SEO, dando preferência no destaque dos títulos a fontes que têm maiores alcances nas redes sociais.

 

• Uma submissão às estratégias de visibilidade de influencers que passam a ter papel decisivo na definição das pautas (o chamado gatekeeping). Nem sempre as matérias mais lidas são as de destaque no portal. Isto porque o acesso aos portais noticiosos é intermediado pelos compartilhamentos das redes sociais.

 

• Na busca de rentabilidade por meio do tráfego orgânico, as próprias mídias alternativas se rendem em parte a essas estratégias impostas pelo novo ecossistema midiático.


Com tudo isto, as singularidades dos fatos espetacularizam de tal forma que o sensacionalismo dito por Adelmo Genro Filho se estabelece como estratégia de sustentação jornalística em novas modalidades. Os repórteres dos portais jornalísticos são pressionados a dar conta dessas novas exigências do modelo de negócios do jornalismo e todas as regras clássicas da boa reportagem como forma de extrapolar as fronteiras das singularidades, possibilitando o conhecimento da realidade por meio do jornalismo, se esvão. Há uma personalização radicalizada dos eventos, uma busca exagerada de explicações simplistas baseadas em uma relação superficializada de causa e efeito e um tipo de “colunismo social” cada vez mais presente, utilizado o expediente de fontes anônimas como forma de publicar “boatos”, “rumores” e “fofocas”.


Neste sentido, o que se observa é um efeito disruptivo negativo para a prática jornalística como forma de conhecimento da realidade. A busca do “porquê” dos fatos terem acontecido de tal forma que impulsiona para a reportagem jornalística deixa de existir. As reportagens deram espaço para colunas opinativas, muitas delas baseadas exclusivamente em posições pessoais (a liberdade de expressão se transfigurando para liberdade de opinião), sem a preocupação de sustentação em fatos ou dados verificáveis. É a morte da argumentação. O esvaziamento do debate político é a principal consequência disto.


Com honrosas exceções, o cotidiano do fazer jornalístico se submete à lógica da economia da atenção imposta pelas tecnologias digitais. Esta é uma das razões – evidentemente não a única – que cada vez mais aparecem outsiders com relativo sucesso na política. O jornalismo como atividade necessária para a consolidação da democracia precisa urgentemente se repensar como prática social dentro deste novo contexto.


  

* Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.


Crédito foto: divulgação.

 

Publicado originalmente no Jornal da USP, 4 de dezembro.


* Página atualizada em 9 de dezembro.

 

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